Ternura


Era uma vez um violino. Tinha música azul.
Tocava-o um músico de cabelo muito negro e longo e mãos longas e brancas. Pegava no arco e todo o azul se desenrolava no ar. Quando a música era mais triste, o azul ia ficando roxo e depois vermelho cor de sangue. Se a música era mais alegre, o azul ficava claro, verde, às vezes até amarelo. Dirão os meus amigos: isto é uma história. Não é. Ou será história, talvez, mas uma história verdadeira. O músico tinha um cão. Que se chamava Jagunço. Era preto e branco o Jagunço. Um rafeiro. O seu olhar meigo, como um luar castanho, todo ternura.
Um dia, o dono, o nosso músico – que se chamava Joaquim – sentou-se junto de uma janela de
sua casa. Uma janela aberta. Era Outono, as folhas das árvores estavam castanhas, quase douradas, como o olhar do Jagunço.
E Joaquim sentou-se com o seu violino. E começou a tocar. Triste. Azul, roxo, vermelho. Vermelho igual à rosa da Primavera? Não. Um vermelho triste de uma ferida na nossa mão.
Jagunço olhou o dono. Olhar triste o do cão. Castanho-dourado das folhas de Outono. Perguntando sem ladrar, sem palavras da sua fala de cão:
— Que te apoquenta? Eu estou aqui e sou teu amigo.
Os sons continuavam. Azuis, roxos, vermelhos. Joaquim estava triste. E Jagunço também. E o violino tocava, tocava, tanto azul, tanto roxo, tanto vermelho… Parou de repente de tocar. Jagunço deitou a cabeça nos joelhos do dono. Perguntando sem ladrar, sem palavras da sua fala de cão:
— Que te apoquenta? Eu estou aqui e sou teu amigo.
O dono passou-lhe a mão branca e longa pela cabeça. Com ternura. Igual à do olhar do cão. Lá fora, nos ramos de folhas douradas, cantou um pássaro. Sons de todas as cores. O Sol acabava de se pôr no horizonte.
Vermelho. Igual a uma rosa vermelha. A uma flor de
sangue numa mão ferida. Joaquim levantou a sua mão sobre a cabeça do Jagunço. A mão que levara ternura trazia ternura. Todo o dourado do olhar. E, como por um encanto, uma rosa vermelha, autêntica rosa de Primavera, ficou-lhe na mão. Fugiu para o arco do violino. E o arco foi uma ramada de folhas verdes. Que o vento da música ia agitar. E Joaquim começou a tocar. Azul, verde, amarelo. Jagunço olhava-o admirado. Talvez os cães sorriam. Talvez. O seu olhar dourado tinha ouro claro de alegria. Era um olhar de rei, mas de rei bom. Rei que entende os rafeiros. Os homens. Todos os Joaquins que sabem dizer se estão tristes ou alegres. E dizê-lo aos outros homens. E Joaquim tocou, tocou, até anoitecer. Um dia, em papel branco de pautas de cinco linhas, escreveu toda aquela música que tinha tocado defronte da janela. Em clave de fá e de sol. De Sol! Jagunço não a sabia ler mas sabia escutar. Joaquim pôs um nome a essa música – Ternura. E Jagunço tudo entendeu com os seus olhos bons.

Matilde Rosa Araújo
O Chão e a Estrela.
Lisboa, Editorial Verbo, 2000

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